https://doi.org/10.51356/rpp.402r2

Acerca d’O Complexo de Lúcifer

O inferno é o que nós criamos, nós com os outros

Emílio Salgueiro[1]

FICHA TÉCNICA

Título

O Complexo de Lúcifer

Autor

Maria José Vera[2]

Edição

Calçada das Letras, 2018

Começo por dizer que a Vera, a autora, quer, como o seu nome prenuncia, ser verdadeira: há que sublinhar aqui o facto de a Maria José Vera ser uma psicanalista sensível, no seu modo de olhar e pensar aquilo que deve ser pensado, na sua verdade e não na sua aparência.

No subtítulo Ensaio sobre a condição do homem contemporâneo: civilização e barbárie , que acompanha o título O Complexo de Lúcifer, destaca a componente de Lúcifer do homem complexo contemporâneo.

Afirma a autora que aviva personagens e situações que pertencem ao universo de ficção, não ao da realidade.

Eu discordo.

As personagens e as situações apresentadas neste livro, embora aparentem ser só ficção, fazem parte de uma realidade mais funda: se assim não fosse, não nos sentiríamos tocados por elas.

Não podemos ignorar que Lúcifer existe em todos nós. Um autor francês de que eu gosto muito (e há já muitos anos que gosto), Jean-Paul Sartre, tem esta frase que se tornou famosa, que é pronunciada numa das suas peças de teatro Huis Clos (1947): «o inferno são os outros». Trata-se de uma afirmação que eu não aceito. Considero que o inferno é o que nós criamos, nós com os outros; não são só os outros que têm o inferno adquirido sabe-se lá como.

É claro que aqui está implícita, clarificada, a dificuldade de viver com os outros. Mas se é difícil viver com os outros, é impossível viver sem eles.

E é uma boa parte disto que se passa na nossa vida, tal como o demonstra a elaboração que a Maria José Vera faz acerca do Lúcifer: este Lúcifer é um Lúcifer solitário, incapaz de ser solidário.

Vê-se na gravura da capa[3] que tem uma perna e um braço acorrentados, não podendo, pois, mover-se dali para fora, embora tenha asas.

Lúcifer vem de Luz, o que carrega a Luz, embora ao mesmo tempo ele seja o porteiro do inferno, o porteiro dos mortos: a condição luciferina é mortífera além de iluminante.

A propósito da complexidade da figura, eis outros sinónimos de Lúcifer: o Belzebu, o Daimon (designação criada por Sócrates segundo o texto de Platão), o Mafarrico (eu simpatizo com esta designação, proveniente da tradição popular oral) ou ainda o Chifrudo: na estátua, a imagem de Lúcifer tem dois pequenos cornos. Esta última designação deve ter origem na ideia dos «cornos» atribuídos aos maridos enganados (quem terá sido a mulher que traiu Lúcifer?).

A perceção e a aceitação da presença luciferina na cidade, connosco e entre nós, conduzem a termos de conviver com a sua presença como parceiro de um diálogo vital, um diálogo com dor, que acaba inevitavelmente por conduzir a um certo endeusamento de Lúcifer, da força de Lúcifer.

É a partir deste endeusamento que se afirma o princípio bíblico da tentação de Eva pela Serpente luciferina, e o Eros e o Tanatos dos gregos, as duas faces de uma mesma moeda, sem existência possível separados.

Aliás, Edgar Morin, outro autor francês que é da minha predileção, diria que o Eros e o Tanatos se encontram numa relação dialógica e recursiva. Dialógica porque há uma relação de diálogo entre eles, que é de certa maneira inultrapassável, sem fim, enquanto a relação dialética reclama um passo seguinte, superior, final.

Esta questão relativa ao facto de o Eros e o Tanatos se encararem inevitavelmente um ao outro pressupõe um respeito e uma aceitação recíprocos, pois um nunca pode deixar de aceitar o outro; trata-se de uma questão recursiva, ideia que se assemelha a uma cobra que morde a própria cauda.

Assim sendo, entre o dialogismo e a recursividade, entre o Eros e o Tanatos, vislumbra-se um princípio da necessidade, pois ambos necessitam um do outro, e mais do que isso, têm de gostar um do outro. Procurar a sua separação só poderá conduzir à destruição da «moeda», pois não existem moedas de uma só face. Nessa tentativa de isolamento, alcança-se a solidão absoluta e destruidora: foi isso, justamente, o que aconteceu a Lúcifer.

A título de exemplo, e a propósito da queda de Lúcifer, ou do Lúcifer caído, posso referir o Livro do Desassossego, no qual o seu autor, Bernardo Soares (semi-heterónimo de Fernando Pessoa), por ser um homem caído no seu próprio abismo interior, procurando-se, aparentemente desligado de Eros, deseja no entanto, bem no fundo, realcançar a vida e a luz que acompanha essa vida, que sente haver perdido. É a partir do pressuposto dessa perda, sentida como quase irremediável, que, enquanto psicanalista e psiquiatra e amante da poesia, afirmo que Lúcifer foi muito mal-amado pelos pais, pelos pais enquanto casal que se amava, mas que não o amava, e, também, ainda, mal-amado pela mulher que terá amado. Tal como Bernardo Soares.

Estamos perante o exemplo clássico da rejeição absoluta do casal parental, do ódio aos pais enquanto seres distintos de si próprio, não obstante a forte ligação que, pelo ódio, mantém com eles.

Encontramo-nos quase perante uma situação de cissiparidade. A cissiparidade é um modo de reprodução biológica que consiste numa espécie de fotocópia.

Há um ser que acaba por se dividir em dois, sendo esses dois iguais entre si. O mesmo não ocorre no casal parental completo. Aqui, a situação é totalmente diferente.

Recordo uma afirmação minha, complementar daquilo que acima afirmei: só existe beleza quando ligada a seres humanos completos. O que aconteceu e acontece ao coitado do Lúcifer é que ele foi forçado a sentir-se o modelo completo que não podia ser, o modelo essencial e superior da beleza: Lúcifer só poderia dar origem a luciferinhos por cissiparidade. Lúcifer assim o afirmou, tal como também afirmou que as suas regras se encontravam dominando, esmagando o seu pensamento e o seu saber. Houve da parte dele uma expulsão dos bons afetos e das boas emoções. Assim se define melhor o grande empobrecimento que ele fez/faz à sua vida mental.

E chegamos, por fim, aos touros e às touradas, à segunda parte deste livro, ainda sob o signo aparente de Lúcifer. São aqui evocadas duas touradas a que a autora assistiu, separadas por vinte anos.

No que respeita à falada agressividade do touro, não considero que seja um caso de ódio ao touro, mas de admiração e respeito que se experimentam em relação ao animal, nem que seja agressividade o que se transmite ao touro por parte do toureiro: é mais uma espécie de firmeza afirmativa que do touro emana e a que se responde em patamar idêntico. Firmeza afirmativa que quase poderíamos chamar de transcendental. E falar de agressividade não define nem o touro nem o toureiro.

E, como é inevitável, de Lúcifer chegamos à temática da morte. Tínhamos de chegar à morte. A ritualização da morte, da morte do touro na tradição taurina em Espanha, já não está só relacionada com os touros, mas também com os humanos.

Refiro-me também aos enterros e às sepulturas. E, no que se refere a estes, coloco aqui uma interrogação relacionada com a cremação, prática de algum modo relacionada com a existência desta ritualização. Posso, no entanto, perguntar: será que a cremação não conduz à anulação desta ritualização?

Na verdade, já não se praticam touradas no Norte de Espanha. Esta suspensão terá sido um ganho, ou, em vez disso, uma perda grave? Creio que foi bem mais uma perda do que um ganho.

É, em boa verdade, uma convicção frágil, esta da vantagem da proibição: fala-se muito na violência da morte do touro, embora se fale muito pouco nas violências sofridas pelo toureiro. Estas ocorrem nas colhidas, nas suas consequentes incapacitações (refiro-me, por exemplo, desde as fraturas de costelas, às tetraplegias, à morte). Será que se pode falar na agressividade do touro quando ocorrem essas lesões e mortes? Ou esta ocorrência não será mais do que o resultado de um tipo de incidente peculiar, mas inevitável, aceite pelos participantes?

E aqui chegamos, por fim, aos cornos do touro: o poder de toque do corno do touro, que é o mesmo corno ostentado por Lúcifer, o chifrudo, é um sinal que conduz inevitavelmente ao mal; o mal provocado pela perfuração, essa mesma capacidade maléfica provocada pelos cornos no marido enganado, permitindo a perfuração, o rasgamento da própria autoestima, do amor-próprio do ser humano. A este propósito, pode ainda formular-se uma última questão: a corrida de touros também deveria ser proibida em Portugal? Acho que não, mas eis um ponto de interrogação que continua absolutamente polémico. E, já agora, esta interrogação poderá ser aceite pela radical emotividade dos amantes de touradas, ou, em vez disso, a própria interrogação devia também ser proibida?

E é com estas interrogações polémicas que termino esta apresentação do livro da Maria José Vera, o qual espero seja lido e comentado, quer pela crítica autorizada, pelos amantes das touradas, pelos psicanalistas ou pela generalidade dos leitores.



[1] Professor Catedrático de Psicologia e Psicanálise. Psiquiatra e Psicanalista. Membro Titular, com funções didáticas, da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). E-mail: emilioeduardo.salgueiro@gmail.com

[2] Pseudónimo literário da Psicanalista Maria José Martins de Azevedo.

[3] Lucifer de Guillaume Geefs, Le génie du mal (1848), Catedral de São Paulo, Liège, Bélgica.